19 de mar. de 2010

PRÓLOGO

Homendigo, o réptil carnavalesco que tirou Jesus da cruz e o levou para jogar uma sinuca, observava as estruturas sobre rodas que desfilavam coloridas nos cruzamentos entre gramíneas, seres humanos e concreto, estruturas estas abundantes em sua inutilidade facilmente verificada nas inúmeras estatísticas de doenças relacionadas direta ou indiretamente ao seu uso, aumentado gradativamente e não mais relacionado com o tempo ( já que o tempo era derrotado pela tecnologia ).

O que havia de mistério em Homendigo saltou diante dos meus olhos naquele instante de curva, e pensar que eu poderia ter dado mais atenção à imperícia do motorista do coletivo me fez ficar ainda mais contente, o que trouxe à tona o desejo não mais inconsciente de ser apenas um imaginador de mundos, sem ter de estar agarrado a eles de qualquer forma que seja, mesmo com o organismo reagindo contra e transformando a audácia num ato clandestino.

Homendigo não tinha pensamentos “comuns”. Seus devaneios criaram um universo à parte, e ele, desencorajado desse ideal de adentrar outros mundos, resolveu dar um basta em sua condição de submisso às relações falidas, que frente a frente mascaravam e costa a costa apodreciam, nuas e cruas como anormalidades infrutíferas, mas procuradas, degustadas, abençoadas e viciadas em hipocrisias das mais variadas, sem remédio, sem cura...

Homendigo não conhecia nem mesmo a saída para os seus problemas... Muitas vezes havia tentado se organizar, mas o umbigo de cada um dos componentes era sempre mais profundo, mais cheio de argumentações e justificativas. Falavam a mesma língua, mas os dialetos complicavam, pois para cada um tudo rodava ao seu redor, cada um vinha de um lugar diferente, e mesmo sem saber da origem do outro, falavam e falavam pelos cantos cada vez mais.

Pode ser que no lugar de Homendigo um outro barbudo venha a sentar algum dia, apenas para pensar, tendo um tempo para recompor no campo das idéias, e logo depois, no campo material, uma ordem não mais usada, ou para criar uma nova, onde o tempo não passe tão depressa e não precisemos nos transformar em robôs, simples reprodutores de algo convencionado pela meia dúzia de gatos pingados que vem nos dominando através das leis que só a eles trazem algum benefício.

(Homendigo I - 08/2002)


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